Tempo e Miragem no conto "A Mulher que prendeu a chuva" de Teolinda Gersão



            O conto «A mulher que prendeu a chuva», de Teolinda Gersão, que dá o título ao livro, é mais uma das narrativas dessa obra que parte do rasgo de um apontamento do quotidiano. Este conto, tal como outros, capta instantes de realidades vividas um pouco por todo o mundo, sendo que os cenários das narrativas são, entre muitas outras alusões a sítios e cidades, Nova Iorque, Berlim, Roma e, naturalmente, Lisboa. Evidencia-se, assim, um momento histórico em que a realidade quotidiana é um presente a ser vivido como que numa errância do ser humano pelo mundo. Deste modo, o homem, o nós, implícito nos contos, se abre à revelação e à experiência. Assim sucede também no conto em análise.

            A riqueza do texto «A mulher que prendeu a chuva» é enorme. A nível de leitura, abordaremos a relevância do espaço, a simbologia do tempo e o dramaturgismo do diálogo. É de realçar que este último aspecto se interrelaciona com a atenção que é dada ao instante, característica própria do conto.

A arquitectura textual deste conto organiza-se a partir de um centro fundamental: a suite presidencial de um hotel na cidade de Lisboa. É a partir deste centro que se faz uma triangulação imaginária entre a Europa e a África. O quarto (Lisboa) surge-nos à margem do real – como se fosse este o único local do mundo onde se pode “entreabrir” uma porta e mergulhar numa realidade diversa (ancestral, anterior ao processo civilizacional e que, insolitamente, ainda permanece viva). Releia-se a propósito a narrativa: “(…)na sala ao lado estava um pedaço de África, intacto, como um pedaço de floresta virgem”.

            É neste espaço tão peculiar, como simbólico, que sucede o encontro inusitado do narrador com duas mulheres de origem africana, “duas criadas negras”. Como marca moderna da civilização europeia actual, este encontro está desde o início marcado pela premência do tempo, que é insistentemente assinalado pela voz do narrador. Ouçamos, mais uma vez, as suas palavras: “ainda eram nove e cinco”; “só tinha de fazer o check in às dez e vinte”; “o táxi não levava habitualmente mais de quinze minutos”; “Eu ia sair dentro de um ou dois minutos”; “Olhei o relógio”; “Sete minutos, exactamente. Não me iriam fazer a menor falta”; “Olhei o relógio outra vez e calculei o tempo que me separava da cidade onde eu vivia, noutra parte da Europa”.

            Justamente, entre a Europa e a África (representadas no texto respectivamente pelo narrador e as duas criadas negras) uma das maiores distâncias significativas é a do sentido do curso do tempo. As criadas têm tempo para trabalhar e conversar; o narrador mal teve tempo, durante os dois dias de trabalho na cidade de Lisboa, para desfrutar das vantagens, com que o acaso o brindou, ao ficar instalado num quarto VIP. Por isso, é tanto mais significativo o facto de, a dado momento, o narrador perder a noção do tempo. Mas não é grave, na perspectiva do homem de negócios civilizadamente atarefado e com voo marcado, pois como ele próprio afirma: “Sete minutos, exactamente. Não me iriam fazer a menor falta”.

            São precisamente estes simbólicos sete minutos que tornam esta narrativa vívida e dinâmica. “Associando o número quatro, que simboliza a terra (com os seus quatro pontos cardeais) e o número três, que simboliza o céu, sete representa a totalidade do universo em movimento”. E é justamente desta dinâmica entre o céu e a terra que trata a história evocada pelo diálogo das criadas negras, que, por sete minutos, fizeram mergulhar o narrador num universo distinto, libertado dos condicionalismos do tempo e da civilização.

            Do quarto alugado, vivido em torno do tempo do relógio e que urge, o narrador abstrai-se da sua solidão existencial e rompe o silêncio que o cerca, durante sete minutos, para comungar de um tempo-sem-tempo, que é o vivido pelas criadas negras, que representam os que estão à margem da sociedade da abastança. Do quarto alugado, o narrador alcança um espaço, simultaneamente jovem e ancestral, que escapa à vertigem da transformação da sociedade moderna, civilizada, europeia. Esse espaço, onde mergulha, é África, que simbolicamente é visão fantástica de uma mudança/renovação de um fim de ciclo civilizacional para que também aponta o número sete.

            Ouçamos o narrador: “Foi então que percebi que falavam”. E a partir daqui iniciam-se os sete minutos da história. Como que captando a qualidade autêntica da vida, a história adquire um registo de natureza teatral cativante, que nos faz vivê-la em similitude com o tempo real. As criadas negras são as personagens da peça e o narrador assume a voz das didascálias. Nos sete minutos que dura este registo, temos um autêntico texto dramático, com verdadeiras didascálias, que são os comentários do narrador, de pendor informativo, reflexivo, descritivo e analítico.

            A personagem que fala evoca uma natureza mutilada:”Tudo tinha secado, a terra abria fendas (…) Gretada da falta de água. A terra tinha feridas na pele. Animais morriam. Pessoas morriam. Crianças morriam. O ribeiro secou. O céu secou”. A descrição desta circunstancialidade de uma terra ferida, mutilada, vai ao encontro de uma mulher, a mulher que prendeu a chuva, que tal como a terra também ela estava ferida. O feiticeiro e o conselho dos Mais Velhos apontam aquela mulher como a culpada: “(…) ela tinha chorado tanto que o seu corpo tinha secado, os olhos tinham secado, toda ela se tinha tornado um tronco seco (…)”. Justamente, o que temos aqui, em associação com o simbolismo do número sete, que corresponde ao tempo da dramaturgia, é uma visão do mundo em que o homem está síncrono com a natureza (a terra e o céu). O macro e o microcosmos estão em relação, em unidade, há uma simbiose. Se magicamente, ou ritualisticamente, como é o caso no conto, se agir sobre um, age-se sobre o outro. E, por isso, quando a mulher é sacrificada, começa a chover. A oferenda sacrificial é uma mulher, sendo que a violência exercida é sagrada. Note-se também como o acto sexual nos surge como um elemento de preparação daquele que vai ser sacrificado, purificando o seu corpo através da libertação de energias instintivas. Este é o meio de reconciliação entre o humano e o divino – é a forma de recuperar a vida. Neste sentido, a isotopia da morte atravessa todo o conto, tornando a narrativa um texto de pendor ensaístico que nos permite reflectir sobre o destino de uma sociedade (a europeia) que nega a pulsão da morte e que, ao   fazê-lo, no fundo, nega também a vida.

            “Por alguma razão irracional”, diz-nos o narrador, na sequência final do conto, este escutou a conversa. E, justamente, o conto, na sua aparente simplicidade, afigura-se um manifesto microcosmos das forças instintivas e irracionais do homem, que, na sociedade moderna, mecânica, civilizada, serão apenas uma sombra oculta (miragem) que irrompe como que na loucura ou na bebedeira. “Mas não estava bêbado nem era louco”, diz-nos o narrador, como que justificando que a realidade, em que durante sete minutos mergulhou, não é senão ficcional para o homem europeu, para sempre desligado de uma dimensão natural, ancestral, na qual o homem e o universo estão em unidade. Estas e muitas outras são as reflexões possíveis a partir do tecido deste conto. Mas, talvez que possamos apenas concluir como o narrador: “Lisboa é que não era, provavelmente, um lugar normal”.



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