Farsa de Inês Pereira – uma visão do quotidiano feminino



 

 

 

Dizer-se que este texto vicentino defende um ideal de emancipação feminina não é verdadeiro e, sobretudo, na época, não seria visto desse modo. Contudo, há distância de cinco séculos, para um leitor do século XXI, encontra-se, na peça, toda uma modernidade na forma como é construída a personagem principal, Inês Pereira, e como nos são apresentadas as circunstâncias da condição da Mulher. É, pois, isto o que, justamente, iremos defender neste breve ensaio.

 

A farsa inicia-se, justamente, com um monólogo de Inês, que, à luz do entendimento que hoje temos da condição feminina, se apresenta como enunciador de uma rebeldia. Rebeldia esta que acompanhará do princípio ao fim da obra a construção da personagem principal. Ora Inês, neste seu monólogo, queixa-se e mostra-se atormentada pela situação de clausura feminina que lhe é imposta pela Mãe. O lugar da mulher é, visto por este prisma conservador, em casa com ocupações domésticas e afazeres próprios da sua condição de género. À jovem não são permitidos divertimentos (pelos quais ela anseia) nem uma liberdade que, a ser possível, definiria um outro modo de vida e uma outra forma de existência mais próximos daquilo que na sociedade ocidental se alcançou, sobretudo a partir de meados do século XX. E, neste sentido, e logo neste momento inicial da farsa, percebemos que a personagem representada por uma jovem mulher irá ter de lutar para atingir os seus objetivos que tão contrários são ao modelo patriarcal da sociedade da época.

 

Como pode, então, Inês resolver este problema da clausura forçada e de certa forma da sua inexistência social? A solução parece ser apenas uma e só possível através da consumação de um casamento. Contudo, inexperiente, Inês pensa que o casamento será um mar de rosas se concretizado com alguém por quem ela se apaixone. Brás da Mata será, pois, o marido escolhido de acordo com um ideal que Inês construiu. Pretende ela que o seu marido seja um homem cortesão, bem falante e de boas maneiras, ao lado de quem ela possa ser feliz enquanto mulher casada e com um novo estatuto social, tornando-se um elemento ativo. Mas este devaneio é na realidade uma utopia com a qual Inês irá ter de lidar logo após o casamento com Brás da Mata, o Escudeiro. Afinal, este seu marido revela-se autoritário e até violento, mantendo-a enclausurada em casa como sucedia quando era solteira. Justamente, para o leitor do século XXI, esta situação de Inês, primeiro obediente à tutela da Mãe, e depois sujeita à tutela do marido, apresenta-se como dramática e o leitor apieda-se da jovem, que, inexperientemente, escolheu mal o marido.

 

E, de facto, foi isso que sucedeu. Aconteceu uma má escolha, porque Inês tinha um outro pretendente, um rico camponês, simplório e ignorante, que não pretendia casar com ela por interesse material, mas, sim, porque dela gostava querendo fazê-la feliz. Pêro Marques, contudo, só casará com Inês, após a morte covarde do Escudeiro, que fugindo da guerra, é morto por um pastor mouro. É, então, a partir daqui, que o carácter leviano de Inês se revela na sua abrangência; mas para o leitor moderno esta leviandade da personagem é afinal apenas um sinal do seu propósito de vida: alcançar a liberdade numa sociedade que, à partida, a condenava ao infortúnio pelo facto de ter nascido mulher.

 

Assim sendo, o provérbio que dá o mote para a peça, «Mais quero asno que me leve, que cavalo que me derrube», personificado o «asno» em Pêro Marques, seu segundo marido, encerra uma sabedoria popular que, no caso de Inês, se vem a traduzir na prática de um adultério que desculpamos pelas circunstâncias de uma vida sem emancipação possível nem liberdade alguma. É certo que Pêro Marques é ridicularizado e alvo de chacota por parte de Inês, mas, ao mesmo tempo, está representada, nesta personagem feminina, toda uma coragem de quem não submete a condição da mulher a um estereotipo conservador, que, anulando a sua vontade própria, a condena a uma vida de solidão e de clausura.

 

Em suma, lida esta obra no século XXI, o leitor encontra em Inês a representação de uma mulher que defendeu o seu direito de ser livre e de ter, deste modo, uma capacidade de decisão sobre a sua própria vida. Terá decidido bem, terá decidido mal? O valor moral da ação final de Inês não é na obra, para nós leitores modernos, o mais importante. O que registamos e fixamos é o direito a uma liberdade, independentemente da época em que se viveu, que toda a mulher tem.

 

 

  

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