Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett - o modelo de Madalena

 


 

Madalena, em Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett, modela todo o recorte das heroínas românticas da literatura portuguesa do século XIX. É ela, sozinha em cena, que abre a peça, deixando, desde logo antever, a marca indelével de uma transgressão que prenuncia um implacável castigo. A dor, a angústia, o sofrimento estão presentes, neste primeiro momento, em que heroicamente (como compete a uma protagonista romântica), Madalena suporta em sagrado silêncio a expiação de um pecado e também o terror do castigo, que sabe como certo, que sucederá num futuro.

Se aceitarmos como verdadeira a premissa de que um destino inexorável conduz a vida humana, tal como Almeida Garrett nos faz compreender nesta obra, melhor observamos que a atitude romântica de Madalena se traduz magnificamente no mais memorável gesto heroico de todas as personagens do elenco de obras do seu século. Com uma coragem indómita, Madalena ousa desafiar a sua própria sina, o universo, a vida maior. A coragem dela não tem equivalente à coragem de Manuel, quando incendeia o seu palácio, desafiando leis sociais e políticas do contexto da época. Não. Madalena vai muito mais longe. Madalena protagoniza o desafio máximo e absoluto. Ela desafia as leis do universo (o destino), quando sabe no fundo de si mesma (como uma verdade não comunicável a outrem) que D. João de Portugal, seu marido, vive e há de regressar; e ousa casar, legitimamente aos olhos da sociedade, com Manuel de Sousa. Numa dimensão estritamente religiosa, Madalena é aquela personagem que, por amor a um homem, posterga a lei de Deus, condenando a sua alma ao castigo e à condenação mortal. De facto, à luz desta lei da igreja, não há salvação para Madalena, ainda que a morte sacrificial de Maria, sua filha e de Manuel de Sousa, e a conversão religiosa para remissão do pecado possam parecer a um leitor compassivo a solução salvífica para a personagem. Mas talvez não seja assim tão clara essa salvação. Confessará Madalena o seu pecado, arrepender-se-á e expiará essa culpa? No segundo ato da obra, em diálogo com Frei Jorge, numa espécie de confissão, Madalena, nesse momento fulcral, admite, sem arrependimento, mas com culpa, ter amado Manuel no primeiro instante em que o viu, estando ela ainda ao lado de D. João. Mas nada dirá a Frei Jorge sobre a consciência que lhe pesa nem sobre o terror de que se sente ameaçada no que diz respeito ao seu primeiro marido estar vivo. Se o fizesse, digamos que a peça poderia acabar neste passo, com a reposição de uma ordem com a qual Madalena rompeu ao admitir socialmente a morte de D. João e ao casar com Manuel de Sousa.

Mas, afinal, de que pode ser acusada Madalena, quando toda a sociedade aceita, ao fim de sete anos de busca infrutífera, a morte de D. João de Portugal? Não é esta a mesma sociedade que aceita a morte do rei D. Sebastião, na mesma batalha de Alcácer-Quibir em que D. João também desaparece, e coloca um outro rei, um rei estrangeiro, no seu lugar? Contudo, o problema de Madalena é diferente. Trata-se de um problema de consciência e não de evidências. Dirá, no final da obra, Manuel de Sousa que a única desculpa de ambos aos olhos de Deus e da sociedade estava na boa-fé das suas consciências, ignorando, contudo, que esta afirmação não era verdadeira quando aplicada a Madalena. De facto, para esta personagem é claro, desde o primeiro momento, que está a cometer um pecado. Ela sabe-o e disso tem consciência. É uma mulher adúltera e bígama. E sabe que está condenada. Mas o que é extraordinário, em Madalena, é a sua capacidade de enfrentar a condenação como se olhasse a Deus olhos nos olhos e aceitasse de cabeça erguida o castigo absoluto por ter escolhido amar Manuel. Podia ser de Madalena a fala de Maria, no final do terceiro ato, que, desafiando a igreja e a sociedade, pergunta que Deus é este que quer roubar um pai e uma mãe a uma filha, se Madalena tivesse em si mesma as forças para ir contra a decisão de Manuel, seu amado, de se redimirem os dois, professando.

Finalmente, o exemplo de heroína romântica que Madalena representa, desafiador das leis da terra e do céu, supera, em larga medida, um padrão social e moral de mulheres conformadas e obedientes face a um poder tutelar masculino que condena e tolhe a sempre surpreendente capacidade de amar. E disto é modelo Madalena.


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