Romeiro, quem és Tu?

 


 

Figura central, na obra Frei Luís de Sousa, o Romeiro representa, no fundo, a voz angustiada dos deserdados e dos despojados, quando lucidamente afirma ser «Ninguém».

 

E quem, de facto, poderia ele ser, no momento da chegada ao seu palácio, e observando que, pelo destino da vida, da crença na sua morte se fizera a felicidade dos outros? É neste drama humano que assenta o grande interesse desta peça de teatro de Almeida Garrett. A ele não pode ficar indiferente o leitor atento da obra, que, embora seja preparado desde o início da ação para o aparecimento desta figura, só, na sua chegada, entende bem o compungimento da dor que atinge a personagem. E sabe a personagem, e sabe o leitor, que é impossível uma salvação.

 

O livro, obra-prima da literatura portuguesa moderna, toma como motivo central um facto histórico que é a derrota do exército português na batalha de Alcácer-Quibir, e consequente perda da independência da nação lusa, motivada pelo desaparecimento/morte do rei D. Sebastião. Paralelamente, e no mesmo sentido, se move a trama desta peça de teatro. Figura fulcral, D. João de Portugal, fina flor da nobreza nacional, heroico e destemido, que acompanha o exército do rei D. Sebastião, desaparece na batalha e, tal como o monarca, é considerado morto; a partir dessas duas mortes, pode-se, então, dar sentido e projetar uma nova vida. Para o reino, com um novo monarca e uma nova dinastia; para a família de D. João de Portugal, com um novo casamento da sua legítima esposa. Mas há vozes que não sossegam, avisando que o rei D. Sebastião voltará (que não morreu), e há a voz de Telmo, fiel aio de D. João de Portugal, que funda a sua crença no regresso do seu valente e nobre amo, por palavras escritas pelo próprio D. João de Portugal no dia da batalha, que diziam que por uma última vez que fosse ele havia de voltar ao encontro dos seus a quem tanto amava.

 

Ora, justamente, este amor sentido por Madalena manifesta-se em todos os momentos da presença em cena de D. João de Portugal, convertido em Romeiro por força das circunstâncias da ação da peça, já que foi por sua própria esposa riscado do número dos vivos para que esta pudesse libertar-se de um amargo estado de viuvez que não desejava para si própria. Ao contrário da esposa, D. João de Portugal manteve a sua fidelidade durante vinte e um anos e, no seu regresso, acredita vir a encontrar em Madalena a mesma compunção amorosa que a ele o moveu para caminhar sem parar de modo a chegar ao seu palácio no dia do seu aniversário de casamento. Mas chegado, depara-se com a pior das situações: a esposa casara de novo com um outro homem e, para além de tudo, não o reconhece, quando na pessoa do Romeiro ele se lhe apresenta.

 

É, então, mediante esta realidade e situação, que o Romeiro assume, num primeiro momento, o papel de anjo do destino, vingador, revelando a Madalena e a Frei Jorge, também presente, que D. João de Portugal, único e legítimo marido de Madalena, não morreu e encontra-se entre os que estão vivos. Neste primeiro momento, o Romeiro dirá, «Sofrei que ele também sofreu», numa assunção de que o sofrimento pelo qual está a passar é de tal forma intenso e insuportável que só se mitiga numa dor que veja ser sentida também pela amada. Bebei o cálice do sofrimento, da amargura e da ausência de esperança é o que significa a atitude do Romeiro neste único e último encontro com Madalena. Mas o amor do Romeiro por Madalena vence o compungimento da dor que é sentida por este, sobrepondo-se a tudo. Sendo que o seu último sacrifício é abdicar de todas as coisas que representam para si mesmo um bem terreno, nomeadamente o seu nome que ele pretende que permaneça honrado e limpo de qualquer afronta vil. Na verdade, já não há lugar para ele no mundo que era o seu. Isto está bem patente, quando ele afirma, trespassado pela dor que morreu, no momento em que a sua esposa anunciou, perante a sociedade, a sua morte.

 

Aparentemente, é muito reduzida a presença em cena do Romeiro; mas, contudo, é de observar que desde a primeira cena do primeiro ato que a referência direta ou indireta a D. João de Portugal é uma nota dominante. É a ele, e ao seu regresso, que Madalena, a esposa adúltera, se refere, quando manifesta a sua angústia permanente desde o casamento com Manuel de Sousa. É sobre o regresso de D. João de Portugal que Telmo, o fiel aio, avisa e vaticina que o amo não morreu e que regressará. É, na sua inocência e candura perspicaz, que Maria, filha do novo casamento de Madalena, refere o regresso do rei D. Sebastião, como sendo a voz do povo, que é a voz de Deus; havendo nesta ideia juvenil uma similitude, que o leitor pode observar, com o regresso de D. João de Portugal.

 

E, neste sentido, podemos observar como é dissonante – embora seja equivalente – o regresso de D. Sebastião e o regresso de D. João de Portugal. De facto, enquanto seja um bem para a pátria (a sua salvação) o regresso de D. Sebastião – para a família esse regresso (no sentido em que deixa antever que também D. João de Portugal não morreu e pode regressar) é a sua destruição. O que salva a pátria condena a família. (E o que salva a família, a morte de D. João e de D. Sebastião, condena a pátria). Daí se perfilar, como contrário a esse desejo do regresso do rei, Manuel de Sousa, segundo marido de Madalena. Mas, neste ponto, há que fazer uma reflexão: o regresso de D. João de Portugal na figura do Romeiro, aquele que já não é quem antes foi, mostra bem como é também inviável o regresso de D. Sebastião. Então, o sebastianismo presente na obra vai no sentido de evidenciar que também o regresso do rei já não é possível, porque a realidade é outra, é diferente do que antes foi.

 

Finalizando, qual será, então, o destino do Romeiro? O destino das outras personagens fica bem clarificado na peça. Maria morre. Madalena e Manuel de Sousa professam e recolhem-se cada um a seu convento. Mas e o Romeiro, que destino será o seu? A obra não o clarifica. Haverá lugar para ele, enquanto D. João de Portugal, no plano da sociedade? Talvez não. Talvez errante e alheado da sua identidade, o Romeiro assuma um destino idêntico às das outras mortes na ação da peça – também ele tragicamente condenado pela sina desastrosa que foi infligida à pátria e à família – no lugar do rei português, ninguém; no lugar do nobre D. João de Portugal, também ninguém.  

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