Poesia Trovadoresca – na gesta dos cantares de Amigo



«Meu pensamento é um rio subterrâneo.»
Fernando Pessoa

Ressoa, na voz feminina, dos cantares de Amigo, um outro tempo… Um tempo longínquo e imemorial, um tempo, do qual tendo sido perdida a substância, evoca uma época onde a Mulher teria, na sociedade, um papel não passivo, mas pleno de significado. É em torno desta Voz feminina e dos seus perfis conceptuais que se desenvolve este ensaio.


É inegável e inquestionável a profunda originalidade dos cantares de Amigo, que encontraram, nesta zona remota e a mais ocidental da Europa, um lugar de expressão próprio. Bebendo de uma tradição árabe, a lírica galaico portuguesa peninsular soube, contudo, encontrar um caminho próprio e original, criando um todo poético com uma unidade específica: a da voz feminina que protagoniza a expressão do sentimento amoroso. Pode, em todo o caso, este aspeto ser apenas considerado como um secundário ato de fingimento literário, pois é um trovador, homem, que, usurpando a voz feminina, imagina ser uma donzela enamorada. Não é, contudo, na perspetiva da minha leitura, essa ideia de fingimento que será explorada. De facto, considero como absolutamente singular, para a sociedade do século XII, que um acervo literário tão significativo como o é o das cantigas de Amigo seja protagonizado pela expressão do sentir mais íntimo feminino. De algum modo, se poderá entender que aqui está presente um vestígio de uma memória ancestral na qual o papel social da mulher terá tido uma singularidade própria.

Iniciaria, justamente, esta minha breve reflexão, considerando um ponto que considero essencial: o da importância de ter “voz” ou de ser dada “voz”. Toda a dinâmica de construção de poder, seja ele de que natureza for, adquira ele a forma política, económica, social, ou outra, passa por esta dimensão fundamental de ser escutado, de ser ouvido. Aquele que profere um discurso desencadeia à sua volta toda uma dinâmica de interações e de raciocínios, que poderão ir da aceitação, e acolhimento, de um dado pensamento até à sua rejeição. Contudo, e isso sim é o mais importante, esse ser adquire, ou é-lhe conferido o estatuto, de falar, de se expressar. Ter voz pode ser considerada uma audácia humana, no sentido em que, ao revelar e transmitir um pensamento, é revelado aos outros a forma, as formas, dum sentir profundo e íntimo. Um escravo não tem voz, um indivíduo submetido à opressão de outros não tem voz, um ser que é desprezado e não aceite não tem voz. Por isso, também, escutar alguém é um sinal de apreço e de respeito.

Justamente por tudo isto, considero importantíssimo o valor de ser numa voz feminina que se expressa a forma simples, genuína e autêntica do sentir do sentimento amoroso na Idade Média. Elevada a um patamar que lhe reconhece o direito e o poder de ter uma manifestação própria, a donzela, ser feminino, perpetuará, nesta voz que alude a um tempo antigo, um conhecimento profundo e completo respeitante a todos os cenários do idílio amoroso juvenil, que vão desde a confissão espontânea da alegria do namoro à demonstração da tristeza e sofrimento pela ausência de correspondência do seu amor.

Nestes belíssimos cantares, é a voz feminina que alimenta a vitalidade da ação lírica ou que nos orienta nas suas simples digressões pela natureza ou ainda, sobretudo na forma dialogada, que promove em nós o reconhecimento do carácter confessional de toda a matéria amorosa.

Meu pensamento é um rio subterrâneo, dirá séculos mais tarde um singular Poeta português, Fernando Pessoa. E, com esta imagem de um profundo caudal que singra no interior da terra à semelhança de todo o rio interior que flui dentro de nós, concluo. Cada cantiga é, justamente, expressão deste extraordinário universo de um certo pensamento coletivo feminino, quase arquétipo de uma forma humana de sentir.




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