Quase eterna… a olímpica morada da nação portuguesa - Ensaio a partir das dezoito primeiras estâncias do Canto I d’Os Lusíadas de Luís de Camões
Cantando espalharei por toda a parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e a arte.
(vv.7-8, estância 2, Canto I, Os Lusíadas)
As dezoito estâncias iniciais do Canto Primeiro de Os Lusíadas, que consubstanciam a
abertura do Poema, têm a forma de Prólogo. Ou seja, nelas vamos encontrar o
propósito de toda a narrativa, bem assim como os elementos que lhe são
centrais, tais como a relevância da Mitologia ou a imagem congregadora de
unidade nacional que é a figura do rei D. Sebastião.
Neste breve ensaio, irei centrar-me na importância que
estas estâncias iniciais adquirem, no todo da Epopeia, servindo aquilo que
podemos definir como o sublinhar de uma ideia principal, e consensual, que é a
do louvor à pátria. Bem sei que não é esta uma linha única de leitura da obra.
Contudo, no seu perdurar dos séculos e até aos nossos dias, o Poema tem
servido, justamente, de memória e de sinal de haver, e ser eterno, um “peito
ilustre Lusitano”. É a partir desta linha de pensamento que se projetam as
minhas palavras.
A Proposição tem o seu ponto fulcral, e mais
significativo, na estância 3, que corresponde ao momento de síntese. O “valor
mais alto” a que se refere o Poeta, e que é aquele que se propõe cantar e que
constitui o motivo central da Epopeia, sublinha a singularidade da nação
portuguesa num confronto que a enaltece. Esse confronto entre os portugueses e
os grandes heróis do passado, um Ulisses, um Eneias, um Alexandre Magno, ou um
Trajano, serve o propósito do engrandecimento do presente. E, neste presente,
que é o presente da gesta do Renascimento europeu, o Poeta consagra uma nação.
A sua própria nação, pelo que esta tem de inigualável num sentido de devir
histórico que se pretende aqui entender num todo universal.
É neste todo, tanto passado quanto presente, e que
corresponde já, à época, a um sentimento de natureza global – planetário – que
os portugueses se destacam quer pelas conquistas feitas além mar, quer pela
própria história dos seus reis e dos seus heróis que praticaram feitos
grandiosos. Em relação aos primeiros, afirma o Poeta que eles foram além “do
que prometia a força humana”; em relação aos outros, afirma que “Se vão da lei
da morte libertando”.
Esta é a memória que se consagra na narrativa. E esta
tem sido a memória que se perpetuou, até ao presente, no sentido de, a partir
dela, ser construída uma identidade coletiva, na qual o génio singular,
heroico, português prevaleça. Assim o parece ter entendido também Pessoa; assim
o parecem entender também tantos outros pensadores portugueses, nossos
contemporâneos, que, eivados de um misticismo moderno, olham para a pátria com
uma predestinação futura de grandeza e de glória. Mas isto só é hoje possível,
porque no passado Camões foi capaz de algo extraordinário que foi definir, por
palavras, aquilo que é o sentimento da Alma coletiva de um povo.
Nas estâncias 4 e 5, momento correspondente à
Invocação, surge um novo elemento de grandeza superior: as Tágides, ninfas do
Tejo. Embora na estância anterior, justamente a terceira, a presença da
mitologia (Neptuno e Marte) já estivesse presente com significado maior (o deus
dos mares e o deus da guerra submetem-se, obedecendo aos portugueses); é agora,
contudo, que o Poeta sublinha a importância da intervenção de um plano superior
(divino) para o sucesso do seu projeto, à imagem, e em igualdade de valor, com
os feitos realizados pela nação portuguesa.
É importante salientar que, nestas duas estâncias,
aquela que será uma dimensão também significativa e particular da obra,
refiro-me aos excursos narrativos do Poeta, alguns deles de natureza que se
pode considerar autobiográfica, surge, neste momento, pela primeira vez. De
certa forma, é como se o Poeta se apresentasse biograficamente no que diz
respeito ao seu trabalho de escritor como alguém que até ao momento se dedicou
à escrita da poesia lírica, humildemente,
e que, a partir de agora, carece de uma inspiração de maior fôlego necessária
para a escrita de um poema épico. O Poeta tem consciência, portanto, da
grandeza da sua empresa pessoal, e precisa, por isso, de “Um estilo grandíloco
e corrente”, para que, tal como os feitos dos portugueses que superaram os
feitos grandiosos do passado, também o seu Poema, a sua Epopeia, seja igualado
às epopeias da Antiguidade.
Curiosa é também, nestas duas estâncias, a aproximação
que se estabelece entre a ação bélica e de grandeza heroica e a ação de
natureza intelectual, traduzida na escrita. Mais à frente, numa outra parte da
Epopeia, o Poeta mesmo dirá “Numa mão sempre a espada e noutra a pena”. Ou
seja, tal como desde a primeira estância o Poeta vinha projetando e enaltecendo
superiormente os feitos dos portugueses, também agora, neste momento,
acrescenta um elemento de superlativação da pátria, na esteira dos grandes
poemas épicos do passado, surge agora um novo e raríssimo exemplo novo, uma
epopeia do mundo moderno. E, neste sentido, o seu feito – o seu “igual canto” –
iguala-se aos “feitos da famosa Gente vossa”, os portugueses. Em síntese: um
povo guerreiro e poeta!, igualando, ou se não superior, ao exemplo das
civilizações antigas.
Avanço, agora, para o terceiro momento deste longo Prólogo, que corresponde a uma, também
longa, Dedicatória.
Iniciando-se na estância 6 e terminando na estância
18, a Dedicatória tem como elemento central a figura do então jovem rei D.
Sebastião. A este rei, “ó bem nascida segurança/Da Lusitana antigua liberdade”,
como a ele se dirige o Poeta, é feito logo no início um extenso louvor na
expectativa de que, no futuro, D. Sebastião venha a prosseguir na gesta de
glória nacional tal como o fizeram os seus antepassados. E, justamente, porque
a figura do rei D. Sebastião encerra um misto de predestinação divina (do seu
nascimento dependera a independência de Portugal), a escolha do rei, para a ele
ser dedicado o Poema, deixa antever um sentimento de fortíssima esperança em
relação a um destino imperial da nação que viesse a ser consolidado pelas
gerações futuras.
A pretexto do louvor e enaltecimento do rei, feito é o
prosseguimento do louvor e enaltecimento da pátria, sendo salientadas e
individualizadas algumas das figuras heroicas que são cantadas no Poema.
Digamos que os versos “E julgareis qual é mais excelente: / Se ser do mundo
Rei, se de tal gente” sintetizam o tom hiperbólico adotado ao longo de toda a
Dedicatória quer em relação ao rei, quer em relação aos portugueses, quer até
em relação, no fundo, à própria grandeza do Poema.
Expressa-se, assim, nestes três momentos, que
obedecem, em termos de estrutura, às três partes iniciais de uma epopeia
clássica, e que antecedem o início da narração, a natureza grandiosa de um
povo. Não só singularizado pelo feito heroico da ação épica nos mares, mas
enaltecido, em termos coletivos, através da grandeza dos feitos heroicos dos
seus antepassados. E, deste modo, Os
Lusíadas não serão apenas a narrativa de um feito heroico, grandioso, na
história de um povo. Mais do que isso, muito mais do que isso, aquilo que o
leitor pode esperar encontrar é uma certa dimensão da Alma da pátria, que não é
senão uma expressão do Amor do Poeta pela nação portuguesa, como ele próprio
afirma, dirigindo-se a D. Sebastião, dizendo “Vereis amor da pátria, não
movido/De prémio vil, mas alto e quasi eterno”. E é enquanto expressão deste
Amor que a Pátria permanece imortalizada no Poema de Camões.