The bliss ou de como Ulisses navega para a delícia das coisas imperfeitas - Ensaio a partir do conto “A Perfeição” de Eça de Queirós
“Aqui na orla da
praia, mudo e contente do mar,
Sem nada já que
me atraia, nem nada que desejar,
Farei um sonho,
terei meu dia, fecharei a vida,
E nunca terei
agonia, pois dormirei de seguida”
Fernando Pessoa
(1929), in O Rosto a as Máscaras (Antologia)
A autora deste
ensaio toma como ponto de análise a estrutura da ação neste conto de Eça de
Queirós para, a partir dela, defender a ideia de que Ítaca é apresentada, na
pequena narrativa, que está centrada na figura mítica do herói Ulisses, como
imagem do destino do Homem. Ou seja, Ítaca representa simbolicamente aquela que
é a realidade da existência terrena da humanidade – afastada, desde a queda, do
paraíso.
Facto digno de
significado é o aspeto relativo à duração da ação do conto. Cinco dias. Em
cinco dias decorre a ação. Num primeiro momento, inicial, no capítulo I,
encontra-se Ulisses na praia, na ilha de Ogígia, meditando, e eis que chega
Mercúrio. Esta chegada do mensageiro dos deuses é particularmente
significativa, pois é ela que vai desencadear a dinâmica dos acontecimentos que
dão origem à narrativa. Sem esta chegada de Mercúrio não haveria senão um
acrescento de mais sete, a que se seguiriam infinitamente
outros sete anos, ao implacável destino de Ulisses, que seria o de viver na
quietude de uma serenidade “perfeita” ao lado de uma deusa que o amava. Mas não
é isso que sucede: Mercúrio chega a Ogígia trazendo uma ordem clara de Júpiter
à qual Calipso só pode obedecer – a sua determinação é a de que Ulisses seja libertado, ou seja, seja devolvido ao
seu destino humano. É este o primeiro dia da ação linear da narrativa do conto.
A ele se sucedem os três dias da construção da jangada, na qual Ulisses irá
enfrentar as ondas violentas dos mares terrenos, e, no quinto dia, após o
início do conto, Ulisses abandona Ogígia, na sua jangada, e parte para “a
delícia das coisas imperfeitas”.
Ora, justamente,
este número “cinco” é símbolo do Homem. Tal como afirmam Jean Chevalier e Alain
Gheerbrant (Dicionário dos Símbolos),
este número representa o homem, “braços afastados, o homem parece disposto em
cinco partes em forma de cruz: os dois braços, o tronco, o centro abrigo do
coração, a cabeça, as duas pernas”. Ao mesmo tempo, referem ainda estes
autores, a propósito da simbologia do número cinco, ele é igualmente símbolo do
universo, “dois eixos, um vertical e outro horizontal, passando por um mesmo
centro”, apresentando-se, assim, como “símbolo da ordem e da perfeição”.
E, neste
sentido, é extraordinária a coerência interna da duração da ação do conto com o
sentido da mensagem da narrativa. Estes cinco dias sinalizam bem e
significativamente a relevância que a dimensão humana adquire nesta obra de Eça
de Queirós. É ela, essa dimensão, que dignifica o sentido da existência
universal e que dá sentido ao Todo do Cosmos. E, nesse Todo, sendo certo que há
um lugar de magnitude para os deuses, destaca-se, contudo, o lugar do Homem; o
que faz da infinita pequenez e fraqueza humana a força que dinamiza e polariza
a existência. Digamos que só pode ser sábia a decisão de Júpiter. A sua ordem
de libertação de Ulisses mais não representa que um repor de ordem no Cosmos,
já que o herói, entendido aqui como representando o Homem, tem uma missão, que
podemos entender como coletiva, a cumprir: essa missão é a superação
individual. E ela só pode ser atingida
em liberdade. Daí a necessidade imperiosa de ser Ulisses devolvido às ondas do
mar revolto, abandonando a tranqulidade e a segurança, inerte, e, por isso, só
aparentemente perfeita de Ogígia.
Regressemos, no
entanto, ao início da narrativa, ao início do conto, ao momento em que Ulisses,
sentado num rocha, reflete sobre o para além do mar tranquilo que o cerca. Em
termos da organização da ação, mais uma vez refletindo sobre a dimensão da
construção temporal, observa-se aquilo a que poderemos chamar uma analepse reflexiva. Ou seja, o narrador,
acompanhando os pensamentos da personagem, congrega o leitor num passado, que
podemos considerar distante; o passado de há sete anos atrás, aquando da
chegada de Ulisses a Ogígia, trazido a este local pela força de um destino que
assim determinou este acontecimento. Mas os pensamentos de Ulisses, recuam
ainda mais. Recuam a um passado ainda anterior àquele acontecimento. O passado
da partida para Tróia e da despedida de Penélope e de Telémaco.
Justamente,
através desta analepse, o narrador permite-se a apresentação do confronto que
pretende estabelecer, o confronto que é o ponto fulcral desta história. E este
é a confrontação entre dois universos que, aparentemente, se excluem. Um,
terreno, humano, o universo da dor, da luta, da guerra, mas também do dinamismo
e da vitalização da existência. Outro, divino, pertencente aos deuses, o
universo da paz, da harmonia, da serenidade imutável, mas justamente por isso de
onde está ausente o dinamismo da vida. Neste sentido, a escolha de Ulisses
remete-nos para a própria escolha do narrador, que será a do enaltecimento da
dimensão humana e da sua condição existencial.
Todo o primeiro
capítulo, ao longo do qual o narrador nos apresenta o gemido de Ulisses, “numa
escura e pesada tristeza”, serve, afinal, para nos apresentar uma visão, quiçá,
estranha em torno do ideal de felicidade, associado a perfeição. A própria descrição física de Ulisses para isso mesmo
aponta. Frases ou expressões como “o seu corpo poderoso, que engordara” ou “os
pés amaciados” compõem, logo à partida, no início do conto, na mente do leitor,
um desafio intelectual na leitura do texto. Não será aqui encontrada a utopia
de paz, oposta a um mundo dominado pelo caos aparente, que, em todas as épocas
e lugares, tem perseguido a humanidade; e este mesmo desafio intelectual é tão
atual hoje mesmo quanto o terá sido no final do século XIX para o Homem daquela
época.
Digamos, que Eça
procura, neste conto, uma resposta para a grande questão eterna que é a da
condição humana. Objetivamente, não somos deuses. Objetivamente, caminhamos
para a decrepitude e para a morte. Objetivamente, à nossa volta o mundo é
hostil e a agressividade e a luta fazem parte integrante da realidade
quotidiana. Contudo, e é isso que nos leva a pensar, Eça de Queirós, através da
sua personagem Ulisses, propõe que existe uma dignidade na vida humana que
supera a aparente adversidade da sua condenação ao sofrimento e à dor. Ou
melhor, existe um privilégio em ser Homem. Privilégio esse vedado aos deuses,
que desconhecem o imenso desafio que está contido na dureza da vida.
E é justamente
isto, que, na visão de Ulisses, nas palavras que profere, a dado momento,
dirigindo-se a Calipso, ele pretende assinalar: “oh deusa, nunca a tua face
rebrilhou com uma alegria; nem dos teus olhos rolou uma lágrima; nem bateste o
pé, com irada impaciência; nem, gemendo com uma dor, te estendeste no leito
macio… E assim trazes inutilizadas todas as virtudes do meu coração”. A
impassibilidade da deusa, completa, acabada, perfeita, no sentido pretérito do termo, reduzem-na afinal, ao
contrário de lhe darem amplitude. Num determinado sentido, para Ulisses,
sustentando assim a visão do narrador, é impossível o Amor na ausência de um
espelho que lhe devolva o seu verdadeiro rosto, a sua verdadeira identidade.
Ora este espelho que Ulisses encontra em Calipso não reflete senão a imagem de
alguém que perdeu a sua dimensão humana. Dimensão esta marcada pelas emoções,
pelos riscos e pelo grande, e imperscrutável, desafio do envelhecimento e da
morte.
Tudo isto,
então, é apresentado como sendo objeto de rejeição por parte de Ulisses e,
neste sentido, a escolha do objeto de Amor, que recai em Penélope, adquire todo
um significado de natureza humana congére que apetece mais, porque
magnificamente é o verdadeiro espelho da natureza e da dimensão do seu ser. Numa
perspetiva mais ampla, e é esse o sentido e o efeito pretendido por Eça de
Queirós, a escolha do caminho das misérias humanas por Ulisses, em detrimento
da eleição de uma deusa perfeita e de
uma ilha perfeita, sugere que a
condição do Homem é, de facto, e por natureza num determinado sentido,
superior.
A comprovar esta
ideia, podemos observar que o único verdadeiro momento de autêntico
“arrebatamento” da deusa ocorre aquando da construção da jangada. Diz-nos o
narrador: “E, como arrebatada nessa atividade magnífica que abalava a ilha, a
deusa ajudava Ulisses, conduzindo da gruta para a praia, nas suas mãos
delicadas, as cordas e os pregos de bronze”. De facto, e justamente, é uma ação
verdadeiramente humana (a construção de algo, com esforço e com empenho) aquela
que vem trazer ao espaço silencioso e tranquilo de Ogígia aquele que podemos
considerar ser, tal como apontado pelo narrador, o sentido da existência, que é
o da dinâmica da ação viva e desafiadora.
“Oh deusa, não
te escandalizes!”, afirma Ulisses, num momento final do conto, respondendo a
uma interrogação de Calipso, e prossegue: “Mas ainda que não existisse, para me
levar, nem filho, nem esposa, nem reino, eu afrontaria alegremente os mares e a
ira dos deuses! Porque, na verdade, oh deusa muito ilustre, o meu coração
saciado já não suporta esta paz, esta doçura e esta beleza imortal”.
E, a partir do
excerto do parágrafo anterior, estabeleço a conclusão deste ensaio. Ítaca é o
verdadeiro destino do Homem. Para Ulisses, Ítaca é a cidade do seu reino; é a
sua morada, onde encontrará, na mulher e no filho, a dimensão do Amor; é também
lá que se defrontará com o esforço e a dureza do sofrimento. E para nós, leitores, sejamo-lo do século XIX
ou do século XXI, e para Eça?, Ítaca representa o quê?
Ítaca representa
o todo que congrega a dimensão humana vinculado a um espaço. Não um espaço como
o representado em Ogígia, em que a utopia, de uma felicidade passiva e inerte,
aparece desfeita; mas, antes, Ítaca apresenta-se como um espaço autêntico e
real, um espaço verdadeiramente terreno, o único no qual o sentido dos fardos,
da decrepitude e da morte ganham significado; porque, na abrangência do seu
sentido, permitem que o homem se eleve a um patamar superior de existência;
superior, pelo desafio que contém, e, por isso, mais apetecível que o patamar
dos deuses. Na verdade, são esses desafios, é tudo isso, incluindo a morte, que
leva Ulisses a afirmar: “Oh deusa imortal, eu morro com saudades da morte!”. E
aqui reside a descoberta da felicidade autêntica, e tal como escreve Fernando
Pessoa, que cito no início do ensaio, o ciclo da vida será fechado.